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Prólogo sensorial, Clarice: a mulher de versos comestíveis


O Clube de Leitura Clarice Lispector – a absolutamente só foi o motivo para trazer ao nosso Mezanino uma reportagem sobre a obra desta escritora importante para a literatura do século XX. O Clube, neste semestre, trabalha com leituras de trechos do primeiro livro da autora: Perto do Coração Selvagem, lançado em 1944, no Rio de Janeiro. A intenção dos encontros é se dedicar aos estudos e à vivência de uma escrita ainda pouco investigada pela academia e interessante à psicanálise. Mas por que a leitura de Perto de Coração Selvagem e não de outro livro da escritora? Pois então, é que a escolha veio de uma lembrança sensorial da coordenadora do Ateliê de Psicanálise, Cláudia Itaborahy, quando se lembrou de um livro de capa verde: “aos poucos, eu vou me revelando na escolha desse livro verde”, ela diz.


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Inspirada por uma passagem de James Joyce, “ele estava abandonado, feliz, perto do coração selvagem da vida”, a jovem Clarice pensa o título do seu primeiro livro. Perto do Coração Selvagem define a intensidade da literatura da escritora que se dedicou a investigar os segredos mais íntimos da psique humana. Mulher de muitos lugares, ela soube explorar o lado sensorial do leitor ao ler e se identificar com aquela escrita; uma questão de empatia que pessoas que viajaram muito adquirem ao longo do tempo. Então, que é inerente à literatura de Clarice, o descobrimento sobre nós mesmos ali representados. É como a Cláudia no Clube de Leitura, que ainda está descobrindo porque se lembrou do livro de capa verde.


Uma escritora que sempre esteve interessada na profundidade: por isso Clarice foi um corpo estranho entre sua geração de escritores. Sua escrita é feita do corte e do sentimento sem nome. É como se ela não entendesse o significado instantâneo das coisas já postas e olhasse o mundo sempre pela primeira vez: uma visão crua da existência, uma empatia ardente que parece tocar o que pertence a uma consciência coletiva, como a heroína Macabéa, em A Hora da Estrela, que para a crítica representa o retrato perfeito do Brasil na época (1977). Mesmo mulher de muitos lugares, Clarice era acentuadamente brasileira, captando muito rapidamente os problemas deste lugar.


A obra de Clarice Lispector é marcada pela abertura de vários começos. Não há uma linha que leve a uma progressão da história. Não há um aperfeiçoamento a ponto de dizer que a escrita atinge uma perfeição. Pelo contrário, há um questionamento intermitente na escrita de Clarice Lispector, uma pergunta sem resposta sempre presente, como no caso do conto “O ovo e a galinha”, um dos preferidos da autora, e um dos mais enigmáticos da literatura brasileira.


Clarice em entrevista para a TV Cultura em 1977 no momento em que diz, "Hoje estou triste, porque estou cansada".

Sobre as características da escrita da autora, Roberto Côrrea dos Santos, pesquisador de sua obra, diz que Clarice movimentou-se da mais estruturada organização discursiva à mais plena e compacta viagem verbal em A maça no escuro, passando pela mais fragmentária anotação, em textos do livro A descoberta do mundo, depois à mais insólita experiência do gesto de observar a si como outro, como em A paixão segundo G. H e à mais intensa pulsação dos sentidos, em Água Viva. Estas observações evidenciam o caráter complexo da obra completa da autora. A autenticidade dela foi muito favorecida pelas concessões que não foram feitas por Clarice quando o assunto era a sua liberdade para escrever. Ela se negava a ser estereotipada como “escritora profissional”. Em entrevista à TV Cultura, em 1977, pouco antes de sua morte, ela é franca “eu só escrevo quando eu quero, eu sou uma amadora e faço questão de continuar sendo uma amadora”. Sobre os intervalos de tempo em que ela não escrevia, ela é poética: “são estes os hiatos [de tempo], hiatos em que a vida fica intolerável”. Um sofrimento para ela que tinha impulso de escrever até nos lenços de papel ou nas costas do talão de cheques: “eu acho que quando eu não escrevo, eu estou morta”.


Clarice quando escrevia se comunicava com o que de mais secreto existia nela. Sua entrega visceral à escrita faz de sua obra um importante objeto de estudo para a psicanálise. A investigação ardente dos desejos, a desconstrução da ordem, da boa consciência, a vontade de captar o que escapa e o que falta, o que não tem nome faz com Clarice diga sobre o indizível. Por ser tão brilhante sobre desvendar os mistérios humanos na tentativa própria de se desvendar é que ela conseguiu ser uma voz coletiva e ter seus versos mastigados pelas massas nas redes sociais. Qualquer trecho de Clarice Lispector, mesmo que exilado do texto original, consegue imprimir a ardência de sua verdade. Os versos de Clarice são comestíveis e vestidos por uma legião de leitores. Refiro-me àqueles também que nunca leram um livro inteiro da autora, mas que conseguem sentir o que ela escreve em trechos soltos, frases e versos.


A crítica sempre esteve preocupada em desvendar Clarice, em compreender excessivamente sua estrutura discursiva, como que na tentativa de encaixá-la em um determinado estilo. No entanto, a jovem leitora de James Joyce, caótica e intensa, aprendeu desde cedo a desenvolver uma linguagem própria e ousada para o seu tempo, que gera, a princípio, um estranhamento, mas depois é quase impossível não se envolver com o seu processo de escritura. Na entrevista à TV Cultura, quando questionada sobre a compreensão que os leitores têm de sua obra, ela diz: “Ou toca ou não toca. Suponho que me entender não é uma questão de inteligência, mas sim de entrar em contato”.


Mapa sobre a escrita de Clarice no Rio de Janeiro: lugares onde viveu e escreveu sobre...

Este entrar em contato mencionado por Clarice Lispector é de grande valia para a psicanálise, que atenta à autenticidade da obra da autora, cria métodos, como o Clube de Leitura do Ateliê de Psicanálise, por exemplo, para investigar sobre os mistérios que ela tenta traduzir sobre o mais difícil de ser captado da criatura humana. Por meio de uma linguagem imagética construída com paixão e capaz de iluminar lados ainda obscuros da alma humana, Clarice se livra dos sentidos para criar a sua arte. Sua criação, então, é esta palavra que se come porque alimenta. Hermética para alguns, apenas visceral para outros, a escritora segue na cabeceira da cama de seus leitores, nas estantes de destaque das livrarias, na releitura dos incompreendidos da sua obra, e mesmo entrecortada em versos nas redes sociais. Olímpico de Jesus pergunta à Macabéa e a psicanálise pergunta à Clarice Lispector “Mas você não reparou até agora, não desconfiou que tudo que você pergunta não tem resposta?” (...)


Ateliê de Psicanálise cria método para se dedicar à literatura de Clarice Lispector por meio da atividade do Clube de Leitura. Neste semestre, os encontros são dedicados à leitura do livro Perto do Coração Selvagem.




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